quinta-feira, 22 de abril de 2010

Há 25 anos começava o "Nuremberg" Argentino

Quepe do almirante Emilio Massera sobre a mesa do banco dos réus no julgamento de 1985
Na mesma semana em que o último ditador argentino, o general Reynaldo Benito Bignone, foi condenado a 25 anos de prisão por crimes contra a Humanidade – e enviado a uma prisão comum – os argentinos comemorarão hoje, quinta-feira, um quarto de século do início do julgamento dos principais líderes das juntas que governaram a Argentina durante a ditadura militar (1976-83). O inédito julgamento de ex-ditadores na América Latina foi denominado em todo o mundo de “o Nuremberg argentino”, em alusão ao julgamento de Nuremberg, que em 1947 condenou os criminosos de guerra nazistas.

A Argentina havia voltado à democracia pouco tempo antes, em dezembro de 1983. O país era governado pelo presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), que enfrentava pressões intensas dos quartéis para não “ousar” realizar o julgamento que colocaria no banco dos réus os responsáveis pelas graves violações aos Direitos Humanos ao longo dos sete anos de regime militar.

Na ocasião, as principais figuras da ditadura, entre elas os generais Jorge Rafael Videla, Roberto Viola, Leopoldo Galtieri e o almirante Emilio Massera, sentaram no banco dos réus para responder à acusação de sequestros, torturas, detenções ilegais em campos de concentração clandestinos, roubo de bens e o assassinato de 30 mil civis, além do ocultação da maior parte dos corpos das vítimas, que ficaram conhecidas como os “desaparecidos”.

O promotor Julio César Strassera disse ao Estado que devido ao número de 10 mil de delitos sobre os quais existiam constâncias, foi necessário focalizar o julgamento sobre os “casos paradigmáticos”. Desta forma, a promotoria apresentou 709 casos, dos quais o tribunal decidiu examinar 280.
O general Videla e o almirante Massera foram condenados à prisão perpétua. Outros, como o general Viola, recebeu a sentença de 17 anos. O julgamento, iniciado em abril, concluiu em dezembro de 1985.

REBELIÕES – No entanto, uma série de rebeliões militares paralisaram o processo das investigações dos restantes crimes da ditadura. Em 1986, um dos levantes dos quartéis obrigou o governo Alfonsín a assinar a Lei de Ponto Final, que determinava um prazo exíguo para a abertura de novos processos contra os militares. Em 1987, outra rebelião forçou o governo a assinar a Lei de Obediência Devida, que eximia os subordinados de qualquer culpa, já que haviam cometido crimes “por ordens superiores”.

Em 1990, o presidente Carlos Menem decretou um polêmico indulto dos líderes militares. Apesar dos perdões presidenciais, organismos de defesa dos direitos humanos conseguiram explorar uma brecha nos indultos, a dos sequestros de crianças. Desta forma, vários militares puderam ser levados novamente à prisão, como o general Videla, detido em 1998 em prisão preventiva.
Em 2005, a declaração de inconstitucionalidade das leis do perdão ao ex-integrantes da ditadura permitiu a retomada de uma série de processos que haviam sido engavetados desde o final dos anos 80.


MILITARES QUERIAM TROCAR JULGAMENTO POR CONFISSÃO

Há 25 anos, no dia 22 de abril de 1985, Julio Strassera tornava-se famoso em todo o mundo ao iniciar as acusações dos ex-integrantes das juntas militares. Um quarto de século depois, aos 77 anos, Strassera recebeu o Estado em seu apartamento no bairro da Recoleta para uma entrevista na qual recordou a tarefa sem precedentes de colocar os ex-ditadores no banco dos réus.
Estado – O julgamento das juntas compara-se ao tribunal de Nuremberg?

Strassera – Este foi um caso único no mundo. Não se compara a Nuremberg, já que esse tribunal foi feito por um exército vitorioso estrangeiro. O julgamento aos integrantes da ditadura na Argentina teve as mesmas necessidades morais de Nuremberg, mas foi superior do ponto de vista jurídico. É que foi a primeira vez que tribunais civis julgaram pessoas que detiveram a somatória do poder público. Isso foi possível graças a uma decisão política (do presidente Raúl Alfonsín). Foi até diferente do caso do julgamento dos coronéis gregos (em 1975), condenados por traição à pátria. Aqui os militares foram condenados por delitos comuns, aplicando para isso o Código Civil. Isto é, sequestros, roubos, assassinatos.

Estado – Dias antes de iniciar pediram-lhe ‘suavizar’ o julgamento?

Strassera – Uma pessoa me ligou e disse que os militares estavam dispostos a confessar em troca de que não fossem julgados por seus crimes nem que eu apresentasse as provas. Além disso, pediam que as vítimas não dessem seus depoimentos sobre as atrocidades. De nada servia uma confissão ôca, do gênero “confesso pelo bem da pátria”. Mandei aos diabos essa proposta…
Estado – O que achou da condenação, anunciada na terça-feira, do general Bignone, o último ditador, a 25 anos de prisão por sequestros e torturas?
Strassera – Sua condenação e envio à uma prisão comum é correta, pois é uma consequência direta dos processos feitos contra o ex-ditador nos anos 80.
Estado – Bignone, antes de ouvir sua sentença, que a ditadura havia combatido “uma guerra” dentro do país contra a “subversão”…
Strassera – Aqui nunca houve uma guerra, nem uma guerra civil, tal como foi na Espanha nos anos 30. E, na hipótese que tivesse sido uma “guerra”, os presos teriam que ter sido colocados como prisioneiros de guerra, e não de forma clandestina..Além disso, em 1975 (um ano antes do golpe) o general Omar Riveros informou a Junta Interamericana de Defesa que a subversão havia sido militarmente destruída e desarticulada. Em 1976, quando começou a ditadura, não havia mais “guerra”. Isto aqui foi similar à uma caça!

Estado – Acha que o esforço feito há 25 anos é reconhecido?

Strassera – O governo da presidente Cristina Kirchner empenha-se em ignorar o julgamento de 1985, enquanto tenta prolongar ao máximo os julgamentos atuais. Os Kirchners querem que os novos julgamentos sejam seu grande trunfo. A oposição apresentou projetos para acelerá-los. Mas o governo sequer se interessou em discuti-los, pois quer aparecer como campeão dos direitos humanos. A verdade é que quando houve o golpe, em 1976, os Kirchners mudaram-se para Santa Cruz (terra natal de Néstor Kirchner) para dedicar-se, como advogados, à execução de hipotecas. Nunca assinaram um habeas corpus para os prisioneiros políticos, ao contrário de outros advogados que tiveram coragem.

Estado – Não teve medo na época do julgamento? Colocou no banco dos réus homens que haviam ordenado torturas e assassinatos…

Strassera – Nunca tive guarda-costas. E não é uma questão de valentia. Veja só o que aconteceu com (a primeira-ministra da Índia), Indira Gandhi, assassinada pelos próprios guarda-costas! Encaramos as ameaças com humor na época. Um dia telefonaram para fazer ameaças. Minha secretária respondeu à pessoa: “olhe, são 10:15 horas…o horário de atenção para ameaças vai de 9:00 às 10:00. Se quiser encaminhar uma ameaça, ligue amanhã” (Strassera ri longamente).

Estado – Por qual motivo os julgamentos não foram transmitidos pela TV?

Strassera – Alfonsín ficou preocupado pela reação da população. “Estas coisas podem comover gravemente a opinião pública”, me disse. É que havia depoimentos impactantes, como a mãe do adolescente Floreal Avellaneda, que foi empalado pelos militares! As coisas que essa mãe relatava! Uma mãe disse que seu filho havido sido pego armando uma bomba. Olhe só: ela não disse que seu filho era um santo. Mas, na sequência, ela disse: “mas ele não merecia um julgamento, tal como este que está acontecendo? Mas, os militares o mataram e me devolveram meu filho na forma de um saco com ossos”. Eram coisas muito graves para que a TV transmitisse todos os dias…

Estado – O que achou das Leis de Ponto Final e de Obediência Devida? E o que pensa do indulto concedido por Menem à cúpula militar?

Strassera – As leis de ponto final e obediência devida são ditadas após duas rebeliões militares. Mas, os indultos foram uma imoralidade gratuita, já que não existiam nem pedidos da sociedade para isso, sequer pedidos setoriais, isto é, dos quartéis. Mas, considero que o ex-presidente Carlos Menem quis ficar bem com vários setores simpatizantes da ditadura, como alguns setores da Igreja Católica, de certos empresários e de vários líderes sindicais. O governo Alfonsín estava contra a parede na época das leis de ponto final e obediência devida. Menem não estava contra a parede…

Estado – No julgamento algum dos réus teve um comportamento sui generis?

Strassera – Videla era esquisitíssimo, pois ficava sentado lendo um livrinho religioso, ignorando tudo o que acontecia na sala. Massera era agressivo. Ele fez um discurso final furioso. E Viola, ao ver que o público aplaudia as sentenças, virou-se para as pessoas e começou a insultá-las com pesados palavrões…

ÚLTIMO DITADOR FICARÁ EM PRISÃO COMUM
Reynaldo Benito Bignone, nos tempos de uniforme de gala, quando presidia o país
O general Reynaldo Benito Bignone, último presidente de fato da ditadura argentina (1976-83), foi condenado na terça-feira a 25 anos de prisão pelos crimes de roubos armados, sequestros prolongados com violências de 29 pessoas, além de torturas a outros 38 civis durante o regime militar no Campo de Mayo, o maior complexo de detenção e torturas dos anos 70 no país. O veredicto foi anunciado no tribunal oral da cidade de San Martín, na Grande Buenos Aires. O tribunal determinou que Bignone não desfrutará da prisão domiciliar, já que terá que ir à uma penitenciária comum.
“Falam nesse tal número de 30 mil desaparecidos…mas nunca demonstraram que foram mais de 8 mil”. disse Bignone, antes de ouvir a sentença. Na sequência, negou os sequestros de bebês, filhos das desaparecidas: “falam em 500 roubos de bebês, mas não chegam a 30 e nenhum deles foi cometido por militares”.
O ex-ditador tentou mostrar a repressão exercida durante o regime como um evento épico, ao exclamar: “a luta contra o terrorismo nos anos 60 e 70 na Argentina foi uma guerra!”.
Além de Bignone foram condenados outros cinco altos oficiais militares e um delegado de polícia por crimes cometidos em Campo de Mayo, o maior complexo clandestino de detenção da ditadura.
Dentro do perímetro de Campo de Mayo funcionavam quatro centros de tortura e uma maternidade clandestina, onde davam à luz as prisioneiras. Após o parto, as mães eram assassinadas, enquanto que os bebês eram entregues a famílias de militares ou policiais sem filhos.
Bignone, uma das principais figuras do golpe de 1976, governou a Argentina entre o fim da guerra das Malvinas, em junho de 1982 e a volta da democracia, em dezembro de 1983. Em 1985 foi julgado e condenado à prisão. No entanto, em 1990 foi indultado pelo então presidente Carlos Menem (1989-99).
Em 1999 foi detido graças à uma brecha no indulto, que não contemplava o perdão pelo sequestro de crianças. Em 2004, com a revogação das Leis de Perdão no Parlamento – e a confirmação dessa medida na Corte Suprema em 2007 – novos processos foram abertos contra Bignone. Em janeiro do ano passado foi novamente ao banco dos réus pela acusação de sequestro, torturas e assassinatos de civis realizados em Campo de Mayo.
Em 1983, poucos meses antes da volta à democracia, Bignone ordenou a eliminação dos arquivos da repressão da ditadura, principalmente aqueles que indicavam o paradeiro dos corpos dos prisioneiros políticos.

DITADURA, UM FRACASSO MILITAR E ECONÔMICO
Na madrugada do dia 24 de março de 1976 uma junta militar derrubou a presidente civil Isabelita Perón. A ditadura, que duraria sete anos – considerada a mais sanguinária da História da América do Sul – teria um saldo de 30 mil civis assassinados nos centros clandestinos de detenção. A ditadura também sequestrou 500 bebês, dos quais somente 101 recuperaram sua identidade até hoje.
O saldo econômico do regime também foi desastroso. Em sete anos de ditadura a dívida externa disparou de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões.
A inflação aumentou de 182% anual para 343%.
Além disso, a pobreza cresceu de 5% da população para 28%.
De quebra, a ditadura implantou uma ciranda financeira que intensificou o caos econômico.
E, para complicar, a improvisada administração militar provocou um déficit de 15% do PIB.
Além disso, a ditadura argentina implementou grandes negociatas, entre elas a organização da Copa do Mundo de 1978, cujo orçamento inicial era de US$ 70 milhões. Custo final da Copa: US$ 700 milhões (o valor supera amplamente o custo da Copa realizada na Espanha, em 1982, que foi de US$ 520 milhões).
Na área militar a ditadura implementou uma corrida armamentista com o Chile em 1978. Os dois países, que disputavam o canal de Beagle, quase entraram em guerra. A invasão argentina foi detida graças à mediação do papa João Paulo II.
Quatro anos depois, o ditador Leopoldo Galtieri ordenou uma improvisada invasão das ilhas Malvinas, sob controle britânico, desafiando a primeira-ministra Margareth Thatcher a enviar tropas. A guerra terminou com a estrepitosa derrota da ditadura em dois meses e meio.
Paradoxos: A Ditadura tinha um discurso anticomunista mas continuou vendendo trigo para a URSS e não aderiu ao boicote americano contra as Olimpíadas de Moscou em 1980.

Ditadura fez festival de gastos em armanentos e cabides de emprego em estatais e pouco investimento em infraestrutura

‘GUERRA’ OU REBELIÃO LOCALIZADA?
Os militares deram o golpe e instauraram a ditadura mais sanguinária da História da América do Sul (América do Sul, não América Latina) com o argumento (um dos vários) de que a guerrilha controlava grande parte do país. Segundo os ex-integrantes da ditadura, os militares argentinos implementaram uma “guerra”.
No entanto, trata-se de um exagero para justificar os massacres cometidos durante a ditadura.
A pequena guerrilha argentina, mais especificamente o ERP, dominava às duras penas uma pequena porcentagem da província de Tucumán, a menor província da Argentina.
A magnificação da guerrilha foi útil para os militares e também para o prestígio dos guerrilheiros. A nenhum dos dois lados era conveniente admitir a realidade, de que a área controlada pela guerrilha era ínfima.
Os militares e os setores civis que apoiaram o golpe (e os saudosistas daqueles tempos) afirmavam (e ainda afirmam) que o país estava em guerra civil nos nos 70.
Mas, “guerra civil”, rigorosamente, seriam conflitos de proporções mais substanciais, tais como a Guerra da Secessão dos EUA, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Civil Russa logo após a proclamação do Estado Soviético, a Guerra das Duas Rosas (Lancasters versus Yorks, na Inglaterra) ou a Guerra Civil da Grécia após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ainda: a Guerra Civil da Nicarágua, e a de El Salvador. Isto é: bombardeios de cidades, grandes êxodos de refugiados, centenas de milhares de mortos, uma boa parte de um país controlado por um dos lados, e outra parte controlada por outro lado. Isso não ocorreu na Argentina nos anos 70.

Ditadores bizarros: Em setembro de 1980, no governo do general Videla, as autoridades proibiram o uso do livro “O pequeno príncipe” nas escolas, por considerá-lo “subversivo”.
As autoridades também proibiram um livro de engenharia elétrica, o “Cuba electrolítica” (isto é, ‘célula eletrolítica’). Os censores acreditaram que o ‘cuba’ referia-se à ilha caribenha, controlada pelo regime comunista de Fidel Castro.
O general Ramón Camps, que administrava a província de Buenos Aires com mão de ferro, considerava que as crianças filhas dos prisioneiros políticos herdavam, genéticamente, os “cromossomos da subversão”.

PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.
Em 2009 “Os Hermanos“ recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).
………………………………………………………….
Estadão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário